Hera e Zeus: um caso de amor às avessas?

Hera, a personificação da esposa ideal grega. Implacável e agressiva com suas rivais, perseguindo-as sem compaixão.

Hera, a personificação da esposa ideal grega. Implacável e agressiva com suas rivais, perseguindo-as sem compaixão.

Segundo o mito grego, Cronos, filho de Urano e Gaia, é considerado a divindade suprema da primeira geração de titãs. Atendendo a um pedido de sua mãe, tornou-se o senhor do céu, ao castrar o próprio pai com um golpe de foice. A partir de então, o mundo passa a ser governado pelos Titãs, vivendo, assim, uma “Idade de Ouro”.
Tempos depois, Cronos se casa com sua irmã Reia, que lhe dá seis filhos: três mulheres, Héstia, Deméter e Hera e três rapazes, Hades, Poseidon e Zeus.
Temendo ser destronado por um de seus filhos, de acordo com uma maldição profetizada por seu pai, Cronos os engolia tão logo eles nasciam.  Assim se deu com todos, à exceção de Zeus, que foi salvo por sua mãe que, enrolando uma pedra em um pano, entregou-a a Cronos, que a engoliu, sem que percebesse a troca.
Quando adulto, Zeus decide vingar-se de seu pai, e, com a ajuda de sua primeira esposa, Métis, a deusa titânica da saúde, da proteção, da astúcia, da prudência e das virtudes, fazem com que Cronos tome uma bebida que o obriga a vomitar todos os filhos que havia engolido. Assim, Zeus torna-se o senhor do céu e a divindade suprema da terceira geração de deuses da Mitologia Grega, banindo os Titãs para o Tártaro e afastando, definitivamente seu pai do trono, prendendo-o com correntes no mundo subterrâneo.
Aqui, observa-se que Zeus se utiliza do mesmo artifício que outrora se utilizara seu pai: Urano é destituído por Cronos, que é destituído por Zeus.
Zeus é considerado o “pai dos deuses e dos homens”. Sua autoridade é notória sobre todos os demais, tal qual um pai zeloso sobre sua família. É considerado o deus dos raios na mitologia grega; embora haja ainda outros símbolos associados a seus nome: a águia, o touro e o carvalho.
Zeus era irmão e consorte de Hera. Com ela teve três filhos: Ares, Hebe e Hefesto, embora alguns relatos afirmem que Hera os teria tido sozinha. As conquistas amorosas de Zeus, no entanto, entre ninfas e as mitológicas progenitoras mortais das dinastias helênicas são célebres. Segundo a mitografia olímpica, Zeus teria tido uniões com as deusas Leto, Deméter, Dione e Maia. Entre as mortais, teria se relacionado com Sêmele, Io, Europa e Leda.
Hera, por seu lado, configurava-se a esposa amorosamente apaixonada por seu marido, Zeus. Este, por sua vez, era deliberadamente infiel, mantendo, extraconjugalmente, inúmeros outros relacionamentos, não só com outras deusas, mas também com inúmeras mortais.
Conta-se que Zeus era de uma beleza e charme estonteantes, e que as mulheres (deusas ou não), não resistiam ao seu encanto.
Inúmeros mitos mencionam o sofrimento de Hera com o ciúme gerado pelas conquistas amorosas de seu esposo, e descrevem-na como uma inimiga consistente das amantes de Zeus e dos filhos deste com aquelas.
Que deduzimos do mito? Encontramos uma Hera per-di-da-men-te apaixonada por um marido ausente, notoriamente promíscuo, assumidamente adúltero, cronicamente infiel. Ainda assim, uma esposa dedicada, incansável no desejo de vingança contra as amantes de seu esposo e os filhos “bastardos” deste.
Segundo o mito, ao saber do envolvimento de Zeus com a mortal Alcmena, inclusive estando esta grávida do mesmo, e tendo Zeus prometido ser a futura criança, seu primogênito, futuro rei, Hera envidou seus esforços na tentativa de retardar o nascimento da criança, o que conseguiu. A criança, que veio a ser o semideus Hércules, mais tarde, num acesso de loucura causado por Hera, mata esposa e filhos.
Deduzimos do mito, portanto, que Hera é a própria personificação do ciúme. Enquanto por um lado vemo-la como “esposa amorosamente passiva”, por outro enxergamos a “mulher” ferida, amarga, ressentida. O que vale perguntar: como aceitar a infidelidade do marido a ponto de anular-se?
Curioso é que, não obstante todos os seus esforços para “eliminar” os filhos dos relacionamentos proibidos de seu marido, Hera nunca conseguia, de fato, livrar-se das crianças, que sempre sobreviviam a sua fúria, quer seja por “sorte”, quer seja pelo auxílio de outro deus (ou deusa).
Aqui, há que se perguntar: qual a natureza da relação entre Hera e Zeus? Que espécie de “poder” exercia este sobre a mesma, a ponto de esta, não obstante ter conhecimento das inúmeras investidas do mesmo com suas rivais, ainda assim aceitasse a condição de “esposa amorosamente apaixonada”? Até que ponto Hera “aceitava” a condição de “esposa traída”, sustentando uma relação permeada pela angústia e pelo desejo de vingança?
Vale esclarecer que Hera é considerada, segundo a mitologia, a deusa do casamento e da família, protetora das mulheres casadas e da maternidade. Também, a personificação do ódio e do ciúme, e ainda, a deusa da beleza.
Ainda de acordo com uma versão do mito, Afrodite, a deusa do amor, da sedução e da beleza, teria nascido de uma relação extraconjugal de Zeus com a deusa Dione, deusa das ninfas, e, uma vez sendo a personificação da beleza, Afrodite teria “roubado” o título de “deusa da beleza” de sua “madrasta”, Hera. Possuída pelo ciúme, Hera via em Afrodite sua maior rival. Esta, além de ser cria da traição explícita de Zeus, ainda por cima havia retirado-lhe o título de “a mais bela”.
Aqui vale nova indagação: é possível se ver em Hera um misto de “amor e ódio”, “amor e ciúme”, “amor e destruição”? Até que ponto uma esposa “amorosamente apaixonada” aceita a condição explícita de ser “a outra”, a que tudo cala, a que tudo consente? Que espécie de benefício Hera ainda assim usufruía de tal relacionamento,  a ponto de o suportar, de o permitir, de o levar adiante?
Pode-se ainda indagar: que espécie de “amor”1 é esse que se alimenta da “ausência” do outro? Que espécie de “nutrição” é essa, que ao mesmo tempo em que alimenta, também se torna indigesta?
Não se pode, entretanto, deixar de observar o papel de Zeus enquanto sujeito analítico* do ciúme de Hera. Até onde Zeus agia segundo sua natureza e até onde “representava” um papel de “marido como qualquer outro”?
Segundo o ditado popular: “solteiro vai pra onde quer; casado tem que levar a mulher“. Nesse aspecto, pode-se ainda indagar: até que ponto as pessoas estão dispostas a abdicar de suas individualidades em prol de uma construção a dois? Quem, de fato, se propõe a dar uma nova direção a sua vida, agora a dois, assumindo novas responsabilidades, novos arranjos; despindo-se da velha vestimenta, corroída pela insensatez e pela insensibilidade?
Por fim, pode-se ainda levantar a seguinte questão: até que ponto encontramos em nossas relações diárias manifestações típicas da relação vivida entre Hera e Zeus, perpetuando relações estagnadas, esvaziadas de sentido, fadadas mesmo ao fracasso? Que espécie de felicidade é essa que se alimenta do “mal necessário”, do “veneno que cura”?
Observa-se que uma tomada de decisão, qualquer que seja, exige mais do que simplesmente “vontade”. Exige um novo “recomeço”. Exige abandonar a “velha vestimenta”. Quem, de fato, está preparado? Quem é suficientemente capaz de colocar “alternativas” nas relações? E sustentá-las firmemente? Quem é capaz de exigir mais do que “apenas aparências”?
Carl Gustav Jung, o mestre de Zurique, costumava dizer que “mais importante que a conquista da felicidade, a finalidade da vida é a busca de sentido, de significado”. Mas isso já é tema para uma outra conversa.
 ……………
*Triangulação do ciúme:
– sujeito ativo: a pessoa que sente o ciúme
– sujeito analítico: a pessoa de quem se sente o ciúme
– motivo do ciúme: a causa propriamente

 

1 Amor Surreal (Letra de Michael Sullivan, Carlos Colla e Miguel Plopschi)
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