“Causar ciúme não é crime. Você nunca vai poder dizer que, causando ciúme, uma pessoa vai matar a outra.” Esta foi a declaração de um advogado criminalista, ao referir-se a um caso noticiado na imprensa, em que a ex-esposa foi presa preventivamente por ter supostamente incitado a violência entre seu ex-marido e o companheiro atual, culminando com o homicídio deste por aquele.
Ainda segundo tal advogado, a ex-esposa só poderá ser incriminada caso haja provas suficientes de que a mesma estimulou o homicídio. Acrescenta ainda que “os argumentos da prisão preventiva foram baseados em fundamentos machistas“. Não descarta, entretanto, que a mesma possa vir a ser considerada partícipe no crime, desde que provas mais factíveis sejam apresentadas.
O caso traz à tona a velha tese do “crime em defesa da honra“: argumento usado pela defesa para livrar da condenação o homem traído que matasse a mulher ou a pessoa com quem ela o havia traído. Vale destacar que, embora tal entendimento não mais exista no ordenamento jurídico brasileiro, ainda está profundamente enraizado no inconsciente coletivo de nossa sociedade.
Aqui, vale de antemão a indagação: até que ponto o ciúme pode ser considerado o “estopim” para a consecução de uma “ação sem volta”? Até que ponto o indivíduo ciumento apropria-se do direito de “eliminar” o “sujeito invasor”, aquele que “desconstrói” a imagem do outro, enquanto “condutor da situação”? Pode-se afirmar que “apenas” o ciúme seria argumento suficiente para um desfecho dessa natureza?
Segundo Aristóteles, filósofo grego (384aC-322aC), em seus estudos acerca da Metafísica, o mesmo apresenta os conceitos de “ato” e “potência“. Dirá, grosso modo, que ambos os conceitos estão presentes na natureza humana. Dirá ainda que são modos de ser divergentes e diferentes.
Segundo o mesmo, quando se diz que algo é “ato”, diz-se que existe concretamente, que “existe em ato”; que possui existência real. Por outro lado, ao se dizer do ser enquanto “potência”, refere-se a algo que “tem a capacidade de realizar sua existência”; algo que tem a possibilidade de existir, embora não de modo necessário. Assim, a “existência em ato” é considerada pelo filósofo como determinada; enquanto a “existência em potência” é tida como indeterminada, considerando que a passagem de potência a ato pode ou não ocorrer.
Voltando ao nosso tema inicial, pode-se indagar: qual o papel de ambos os conceitos (ato/potência) na figura do indivíduo ciumento? O que verdadeiramente “é” e o que poderá “vir a ser” enquanto resposta a uma situação na qual está presente o “conceito de triangulação”*?
Imaginando ser a natureza humana “potencialmente” assassina de si mesma, pode-se indagar: qual o combustível essencial para desencadear em ato uma potência? Qual o “estopim” adequado para se “justificar” um ato? E ainda: é possível a natureza humana “engolir” a potência, “abortando”, dessa forma, o ato em si?
Aqui, vale ainda destacar o que diz a psicologia acerca do conceito de “estrutura de personalidade”. A expressão “estrutura de personalidade” refere-se àquelas características estáveis da personalidade do indivíduo.
A personalidade é um constructo pessoal que se estrutura ao longo da nossa vida; bem como é uma elaboração da nossa história, do modo como sentimos e interiorizamos as nossas experiências; acompanha e reflete nossa maturação psicológica. Em resumo, a personalidade é um processo “ativo” e que intervém em diferentes fatores.
Seguindo tal raciocínio, pode-se indagar: como a personalidade é estruturada e pode ser estudada? Quais são suas unidades básicas? Quais são e como funcionam seus aspectos dinâmicos? Como a mesma se desenvolve para formar a pessoa que somos hoje? Como as pessoas podem se modificar e por que algumas pessoas têm mais dificuldades?
Verdade é que algumas pessoas administram melhor as inúmeras vicissitudes com as quais se deparam ao longo da vida. Enquanto outras apresentam sérias dificuldades diante das mais variadas situações. E ainda há outras que necessitam sobremaneira de ajuda externa para lidar com seus “inimigos ocultos”, sob pena de se envolverem nas mais diversas situações. Situações essas, muitas vezes, irreparáveis.
A Codificação Internacional de Doenças (CID-10), em seu capítulo “Transtornos da Personalidade e do Comportamento do Adulto” (F60-F69), assim define um “transtorno de personalidade”:
“… diversos estados e tipos de comportamento clinicamente significativos que tendem a persistir e são a expressão característica da maneira de viver do indivíduo e de seu modo de estabelecer relações consigo próprio e com os outros.”
Diante do exposto, poder-se-ia indagar: está o ciúme “enraizado” na estrutura da personalidade do indivíduo? Fará parte integrante do conjunto de “mecanismos de sobrevivência” que o homem se utiliza ao longo de sua vida? E sendo assim, o que explicaria o fato de que algumas pessoas melhor administram o uso de tal “ferramenta”, enquanto outras chegam às vias de fato? E ainda outras que vivem constantemente nos “extremos” das situações? E mais outras que, embora “carregadas” de potência, ainda assim conseguem sublimar toda sua energia, direcionando-as para novas realizações, novos projetos, novas finalidades?
Estaria o indivíduo ciumento potencialmente pronto para transformar em ato toda sua energia negativa acumulada ao longo de suas mais variadas experiências? Seria esse indivíduo induzido a praticar os mais variados atos tão somente por estar exteriorizando algo que lhe é intrínseco, e com o qual não consegue lidar, não consegue conter?
Há ainda que se ter em mente que o indivíduo ciumento se vale dos mais diversos argumentos para justificar seus atos. Muitas vezes, apresenta afirmações as mais variadas, na tentativa de “encobrir” sua própria condição: “ciumento”. Em casos extremos, tenta se valer de “outras condições”, “outros artifícios”, considerando que lhe é extremamente difícil e “vergonhoso” ter que admitir suas “fraquezas”.
Por fim, pode-se ainda levantar a seguinte questão: como a natureza humana tem lidado com o “espaço livre” entre os extremos “ato-potência”? Como é possível estabelecer “intermediários” entre tais extremos, a ponto de melhor conviver com tal condição, causando-lhe menos sofrimento?
Tema para uma nova conversa.
…
*Triangulação do ciúme:
– sujeito ativo: a pessoa que sente o ciúme
– sujeito analítico: a pessoa de quem se sente o ciúme
– motivo do ciúme: a causa propriamente