Segundo o escritor francês Duque de La Rochefoucauld, em seu livro “Reflexões ou sentenças e máximas morais”, “o ciúme sempre nasce com o amor, mas nem sempre morre com o amor” (361).
Já René Descartes, em seu livro “Tratado das Paixões”, art. 167, assim define o ciúme: “uma espécie de temor relacionado ao desejo que se tem de conservar a posse de algum bem”.
Espinoza, por sua vez, aproximando o ciúme da inveja, dirá que o ciúme é “um sentimento simultâneo de amor e ódio, acompanhado da ideia de outro de quem se tem inveja” (Ética III, Escólio da Proposição 35).
Que deduzimos de tais afirmações? Em princípio, o caráter ambivalente do ciúme. Ou a presença de aspectos positivos e negativos. Ou ainda, um quantum de energia que ora constrói, ora destrói.
Enquanto La Rochefoucauld dirá que o ciúme começa visando a um valor positivo, podendo vir a se converter em um valor negativo, Descartes dirá que o mesmo guarda aspectos tanto positivos quanto negativos. Para o primeiro, a ênfase está na aparência louvável que tem inicialmente o ciúme, por ser naturalmente associado ao sentimento de amor. Já para o segundo, enquanto preserva aquilo que é de fato importante, enfatizando aí o caráter zeloso, o ciúme manifesta seu lado positivo. Por outro lado, tende a mostrar sua face negativa quando, movido por mera insegurança pessoal, associa-se ao egoísmo e à avareza.
Espinoza, por sua vez, entende que o ciúme é algo apenas negativo, uma vez que existe uma ameaça aparente de se perder algo, dando lugar a uma tristeza sem fim. Embora aceite a ideia de que o ciúme está intimamente ligado ao sentimento do amor, Espinoza afirma que o mesmo se transforma em ódio sempre que a relação amorosa parece estar ameaçada. E acrescenta ainda que o indivíduo ciumento é levado a adquirir verdadeira aversão pela pessoa amada (sujeito analítico do ciúme).
Diante do exposto, há que se indagar: até que ponto é possível estabelecer-se uma convivência “harmoniosa” entre ambos aspectos, “amor e ódio”, considerando a tênue linha que os separa? Até que ponto é possível ir-se esvaziando o cadinho do ódio, privilegiando a seiva do amor, que lentamente cria raízes profundas? Pode-se mesmo falar em “vencedor”?
Ao analisarmos os diversos aspectos do ciúme, nenhum é mais aparente que a “ideia de posse”* que o mesmo carrega, estigmatizada nas mais variadas afirmações, quais sejam: “se não ficar comigo, não fica com mais ninguém”; “com medo de perder seu bem ‘mais precioso’, matou-o, e depois se matou”; “do que é meu, cuido eu”.
A ideia de “posse” sempre esteve no imaginário do homem; não é diferente em se tratando do tema ciúme. Pode-se até mesmo ir além: quando se trata de ciúme, “posse” é a primeira semente que se joga à terra, não importando se esta está ou não preparada para recebê-la. Aqui, mais vale o sentimento que será “germinado”, que aquele que irá ser um dia colhido. Pode-se ainda ir mais adiante, e vaticinar: “posse” é a cruz que o ciumento carrega! Inexoravelmente!
Aqui, não está em jogo o quanto há de “peso” nessa cruz. O indivíduo ciumento sequer tem essa compreensão: não carrega um “fardo”. Não há “um mundo” sobre seus ombros. O que conta mesmo é a tentativa de aplacar seus sentimentos. Comprove ou não eventual suspeita, mais vale que abandonar o véu do ciúme. Afinal, “quem não sente ciúme?”, dirá o ciumento convicto.
Assim sendo, como é possível uma convivência pacífica entre amor e ódio quando entre ambos se insinua a posse? Como é possível que haja um mínimo de harmonia, sendo o ódio “acorrentado” e “domesticado”? Aqui, convém fazer-se uma breve divagação acerca de um outro sentimento: a abnegação. Até que ponto o homem é capaz de desprender-se dos seus próprios interesses, renunciando a sua própria vontade, numa demonstração clara de desapego?
Nesse sentido, atingimos o extremo oposto do sentimento de posse: o altruísmo. A dedicação desinteressada pelo bem do outro. Aqui, cabe perguntar: o que impede o ciumento de despojar-se do sentimento de posse ao bem amado, e enaltecer a sua felicidade, dando-lhe o direito de escolher novos caminhos? Ou ainda: como se explica que pessoas ditas “altruístas” tenham verdadeiros sentimentos de posse quando diante de situações de ciúme?
Novamente retornamos a Descartes, quando este aproxima o indivíduo ciumento da avareza e do egoísmo, motivado por sua insegurança pessoal. E é justamente essa insegurança pessoal que o impede de praticar a abnegação. Para o indivíduo ciumento, é inadmissível a ideia de liberdade que o pássaro inerentemente possui. É inadmissível conviver com a sensação de que o outro não está “preso” a si. Quando muito, o indivíduo ciumento se utiliza de uma falsa liberdade que concede ao outro. Trata-se, na verdade, de uma “liberdade vigiada”. Em casos extremos, essa vigilância ocupa as 24 horas do dia do ciumento, acarretando-lhe os mais variados comportamentos, os quais podem ser observados: excessivos questionamentos, procura constante por confirmações e ainda ações de natureza agressiva ou mesmo violenta.
Embora a ideia de posse esteja arquetipicamente atrelada ao ciúme (grifo meu), ainda assim é dada ao homem a possibilidade de melhor “administrá-la”, infligindo a si mesmo, dessa forma, menos angústia e sofrimento. Trata-se, aqui, de se estabelecer um “pacto” com aquilo que é de se “domesticar”. Ao indivíduo ciumento, “melhor consciente de sua condição“, resta-lhe uma saída, minimizando, assim, sua dor: domar, dia após dia, a fera interior que insiste em corroer suas entranhas.
Carl Gustav Jung certa feita escreveu: “a triste verdade é que a vida humana consiste num complexo de opostos inseparáveis. Dia e noite, nascimento e morte, felicidade e miséria, bem e mal. Nem sequer estamos certos de que o bem superará o mal ou a alegria derrotará a dor”.
Assim sendo, considerando o caráter inexorável do ciúme, resta ao homem envidar esforços para a melhor convivência com um outro par de opostos, também inseparáveis: amor e ódio. Na balança da vida, o que fazer para o “prato do amor” pesar mais?
Penso ser esse um tema para uma outra conversa.
*É meu, é meu, é meu (letra de Roberto Carlos e Erasmo Carlos)