Ciúme: a fronteira entre o normal e o patológico

  Imaginando-se traído, Otelo mata Desdêmona.
Imaginando-se traído, Otelo mata Desdêmona.
Considerado como intrínseco à natureza humana, o ciúme se manifesta universalmente em qualquer cultura, sendo mesmo considerado “normal” na evolução do ser humano, segundo estudiosos do assunto.
Carregado das mais variadas emoções, tais como: raiva, ódio, tristeza, culpa, vaidade, vingança, orgulho e ansiedade, é o quantum de energia psíquica empregado na manifestação do ciúme que irá levá-lo à fronteira entre o que é normal e o que é do campo da patologia.
Sentir ciúmes é uma manifestação aparentemente normal: é o cuidado carinhoso para com o outro, é o zelo desmedido, ou é ainda a necessidade constante de “acompanhar”  os passos  do outro envolvido. Em outro extremo, o ciúme assume aspectos de rivalidade, competição, desconfiança, quando extrapola os limites do que é normalmente aceito pela sociedade. Nesse sentido, a fronteira entre a normalidade e a patologia se torna muito tênue, chegando ao limite da coexistência (pacífica ou não).
Alguém já comparou o ciúme à saudade, ambos como mecanismos de resposta a uma situação concreta, previsivelmente delimitada no tempo. Enquanto a saudade pode desencadear um quadro grave de depressão, quando se prolonga por mais tempo que o normalmente previsto; o ciúme, quando tende a se prolongar, também pode atingir níveis elevados de depressão, embora sua ênfase caracterize-se mais por estados de angústia e ansiedade constantes.
A fronteira entre o normal e o patológico pode ser prontamente identificada pelo eventual prejuízo que a situação causa aos envolvidos, em especial na pessoa que sente o ciúme. Em geral, a tríade formada pelo ciúme: a pessoa que sente o ciúme1, a pessoa de quem se sente o ciúme2 e o motivo do ciúme3 tende a facilmente exteriorizar seus sentimentos, o que se verifica pela “quantidade” de prejuízo provocado pela situação, que, grosso modo, tende a se intensificar. Vale perguntar: quanto há de raiva, ódio e rancor na relação?
O indivíduo ciumento* é tal qual o soldado que vai à guerra: arma-se com os melhores instrumentos, na tentativa de sair-se vitorioso. Vislumbra sempre a possibilidade de “ganhar”, ainda que seja preciso “eliminar” o motivo do ciúme, ou mesmo “diminuir” a figura da pessoa de quem sente ciúme.
Nesse sentido, passa a nutrir secreto desejo de que seu objeto de amor fracasse, tornando-se (seu) dependente, e assim, fragilizado, mais suscetível ao controle. Aqui, o ciumento amplia seu raio de foco e começa a desejar que o “veneno” do ciúme contamine além do aspecto afetivo outras esferas do(a) parceiro(a), em especial suas capacidades produtivas e criativas. Exemplo claro é começar a ressaltar na pessoa objeto do ciúme deficiências que até então este já havia superado, como a conquista do corpo perfeito após severo regime.
A patologia do indivíduo ciumento apresenta-se em escala, variando de acordo com o prejuízo causado à relação. Em um nível mais brando, pode-se dizer que o indivíduo ciumento apresenta um cuidado “excessivo” com seu objeto de amor, causando, em certas situações, uma espécie de “sufocamento”. À medida que o ciúme se intensifica, quer seja pela veracidade dos fatos (quando a outra parte favorece,  através de insinuações ou mesmo ações), quer seja pela fantasia criada pelo ciumento, as manifestações de ciúme tendem a assumir uma proporção maior, atingindo, em casos mais graves, aspectos de comportamento obsessivo ou paranoico. Assim, haja ou não uma motivação justa, o indivíduo ciumento procura encontrar evidências que comprovem suas desconfianças. Intensificam-se os delírios de perseguição, e o mesmo passa a estar convencido de que é vítima de uma rede de conspiradores.
Obsessão e paranoia são dois ingredientes que funcionam para o ciumento tal qual o fermento funciona para o pão. O ciumento tomado por essa carga de energia negativa insiste veementemente na busca pela comprovação de suas desconfianças, reais ou imaginárias. Seu objetivo é basicamente encontrar provas da “infidelidade” do(a) parceiro(a), justificando, assim, a suspeita de achar-se traído.
São diversas as formas que o ciumento paranoico se utiliza para evidenciar sua desconfiança, chegando ao extremo de se dedicar exclusivamente a “monitorar” a vida do outro. Negligencia sua própria condição (trabalho, estudo, família, amigos, asseio pessoal), e passa a “vigiar” constantemente os passos do “objeto de desejo”. Passa por situações como: ouvir conversas atrás da porta, monitorar a correspondência, ouvir telefonemas, vasculhar computador e telefone, e, em casos mais extremos, chega mesmo a seguir os passos do(a) parceiro(a). Em qualquer que seja a situação, o indivíduo ciumento, na vã tentativa de abrandar seu sofrimento, só o amplifica.
Quanto à genealogia do ciúme, a explicação mais provável está na infância, quando a criança se utiliza de mecanismos psicológicos infantis para justificar o apego aos pais nos primeiros anos de vida. Freud dirá que o mesmo é consequência da má resolução do Complexo de Édipo, quando a criança, por volta dos seis anos de idade, identifica-se com o progenitor do mesmo sexo e ao mesmo tempo sente ciúmes do mesmo em virtude da atração que este exerce sobre o outro membro do casal.
Qualquer que seja a intensidade da manifestação do ciúme, resta indagar que estratégias usar para minimizar os efeitos nocivos das chamadas “crises de ciúme”. É sabido que o indivíduo ciumento apresenta-se inseguro e menos autônomo. Reforçar a confiança em si mesmo, bem como elevar sua autoestima costuma ser a melhor estratégia para diminuir a aflição provocada pelo ciúme. A psicoterapia costuma ser indicada como instrumento para o fortalecimento da confiança em si mesmo e o resgate da autoestima.
Não obstante, considerando que a fronteira entre normalidade e patologia é tal qual um fio, na iminência de romper-se, pode-se perguntar: qual o preço que o ser humano terá que pagar para “domesticar” sua fera interior? Até quando será escravo de si mesmo na busca pela significação de sua existência? Será capaz de aguentar-se, convivendo mais harmoniosamente com a falta que o outro inexoravelmente faz?
Tema para uma nova conversa.
…………..
Triangulação do ciúme:
1 sujeito ativo: a pessoa que sente o ciúme
2 sujeito analítico: a pessoa de quem se sente o ciúme
3 motivo do ciúme: a causa propriamente

 

*Meu ciúme (Letra de Michael Sullivan e Paulo Massadas)

 

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