Recentemente, ouvindo uma palestra de um renomado escritor e palestrante brasileiro, observei que o mesmo cometeu costumeiro engano, ao utilizar a inveja pelo ciúme.
Segundo esse orador, para exemplificar o papel da inveja, o mesmo se utilizou da famosa passagem bíblica (Gênesis, cap. 4, vers. 3-5), na qual Caim mata Abel por “inveja” deste.
Verdade é que nessa passagem o fenômeno que se dá não é o da inveja; mas sim, o do ciúme, conforme se vê a seguir. Tratei desse tema em meu artigo anterior, “O mito de Caim e Abel (ou a questão do ciúme original)”.
Em meu primeiro artigo aqui, procurei fazer uma distinção didática entre ambos os termos, na tentativa de esclarecer ao público as nuances que existem entre ciúme e inveja, e seus empregos, nem sempre claros.
Não obstante intimamente interligados, referidos termos não são sinônimos, como querem supor algumas pessoas, inclusive alguns dicionaristas. Ambos se aplicam a situações específicas, que os distinguem pelos entes envolvidos.
Conforme já expliquei anteriormente, a principal distinção entre ciúme e inveja se dá didaticamente. Enquanto o ciúme é considerado um fenômeno trial (ocorre sempre envolvendo três figuras distintas); tal não se dá com a inveja. Esta, por seu turno, é sempre um fenômeno dual (ocorre entre duas figuras, mais especificamente entre um ente e uma coisa, um objeto).
Psicologicamente falando, também há que se observar algumas distinções entre os termos, embora sejam muito tênues as nuances entre um sentimento de ciúme e um sentimento de inveja.
Não obstante sejam verdadeiras expressões de sentimentos da natureza humana, ainda assim possuem características próprias complexas: sintomas, sinais, relações.
Quanto ao ciúme, costumam-se observar emoções como raiva, tristeza, medo, dor, depressão; pensamentos tais como: ressentimentos, questionamentos quanto à própria imagem, culpa, comparação com um (uma) possível rival. Observam-se ainda reações físicas como: aperto no peito, taquicardia, sudorese, falta de ar, salivação excessiva ou mesmo boca seca. No que se refere a comportamentos, podem ser observados: excessivos questionamentos, procura constante por confirmações e ainda ações de natureza agressiva ou mesmo violenta.
Quanto à inveja, os sentimentos que a acompanham são: inferioridade, rancor, baixa autoestima, desejo de possuir o que há de melhor da pessoa invejada, hostilidade ou malevolência, desejo de eliminar o objeto de inveja.
Embora intimamente interligados, enquanto no ciúme o medo da perda seja o mais aparente, tal não se dá com a inveja.
Ambos os sentimentos são crias da própria condição humana. Permeiam os pensamentos e as ações de cada indivíduo, todos os dias, nos mais variados graus, nas mais específicas situações, nos mais inusitados estados.
Voltando ao exemplo do Gênesis acima, ratifica-se a expressão do ciúme pela existência da triangulação*: Caim, Abel e a figura de Deus.
Didaticamente, Caim exerce o papel de “sujeito ativo”, aquele que sofre pelo ciúme. Abel, por sua vez, exerce o papel de “sujeito analítico”, aquele de quem se sente o ciúme. A terceira figura, Deus, exerce o papel de “motivo”.
Não há que se falar aqui em inveja, pelo exposto. Esta não se dá pela “lei da triangulação” (grifo meu). No caso específico, não se pode negar que haja sentimentos de inveja entre Caim e Abel, considerando a “índole fraca” daquele. Sua autoestima comprometida, eivada de sentimentos mesquinhos, leva-o a desejar a queda do outro. Não obstante, a partir da entrada em cena da figura de Deus, motivo do ciúme de Caim em relação a Abel, cai por terra a falsa explicação de que o homicídio deste se deu motivado pela inveja daquele.
Pode-se observar ainda que na inveja o grande foco é possuir o objeto de desejo: a casa deslumbrante do vizinho, o corpo perfeito da colega de trabalho, a habilidade para o trato com as pessoas que o chefe tem… Em casos mais graves, o indivíduo invejoso planeja eliminar o objeto de desejo, na tentativa de compensar-lhe a falta. Ainda, o indivíduo invejoso sente íntimo prazer quando seu objeto de desejo sofre eventual dano. Como exemplo, pode-se ilustrar a bela casa do vizinho que foi furtivamente pichada.
Por outro lado, no ciúme o grande foco é o medo da perda do objeto de desejo. Temendo perder tal objeto, o ciumento, possuído por uma falsa impressão de vitória, elimina-o.
Ainda aqui se dá novo erro. Considerando que o objeto de desejo não é o motivo do ciúme, eliminar aquele não quebra a triangulação. O que nos incomoda (motivo), não é o que merece ser extirpado?
Nesse sentido, explica-se o fato de que muitos ciumentos, embora eliminando a pessoa amada (homicídio, por exemplo), comentem suicídio na sequência, haja vista não conseguirem lidar com a falta permanente de seu objeto de desejo.
Mas isso já é tema para nova conversa.
*Triangulação do ciúme:
– sujeito ativo: a pessoa que sente o ciúme
– sujeito analítico: a pessoa de quem se sente o ciúme
– motivo do ciúme: a causa propriamente
1 Perdas necessárias (letra de Fábio de Melo)