Segundo A Bíblia (Gênesis, cap. 4, vers. 3-5), ambos, Caim e Abel fizeram oferendas a Deus. Este, por ser pastoreiro, ofertou uma das melhores crias de seu rebanho. Já aquele, que era agricultor, ofereceu o fruto de seu trabalho junto à terra: as melhores vinhas.
Diversos relatos dão conta de que não é muito claro o porquê de apenas uma das oferendas (a de Abel) ter agradado a Deus. Consumido por sentimentos vis, Caim planeja, na sequência, uma vingança contra Abel. Atraindo-o para o pasto, assassina-o com uma foice. Tem-se, portanto, o relato do primeiro homicídio da história.
Assim sendo, diante do fato, inúmeros são os questionamentos a que se pode aludir. Qual era a relação que havia entre os irmãos? Qual era a relação que havia entre Deus e cada um dos irmãos? Havia, de fato, algum privilegiado perante Deus? Por que apenas uma oferenda foi bem recebida por Deus? O fato em si fora motivo suficiente para o homicídio ou teria sido a gota d’água que desencadeou o desenlace na sequência?
Não obstante as inúmeras conjecturas acerca da relação existente entre os irmãos, envolvendo ainda a figura de um Deus soberano e senhor, temido em sua magnificência, há que se supor que a rixa existente entre os irmãos era de longa data.
Sentimentos como raiva, tristeza, medo, ressentimentos, baixa autoestima, culpa, questionamentos excessivos, tendem a evoluir de forma crescente, quando não tratados com o devido valor, no devido tempo. Nesse sentido, pode-se afirmar que Caim não se viu possuído pelo ciúme de Abel em relação a Deus de uma hora para outra. Quando não, havia entre ambos uma relação deteriorada pela prevalência de um em relação ao outro. No que há que se indagar: o ambiente familiar favorecia tal insatisfação entre irmãos, ou tudo não passava de “imaginação” da cabeça de Caim?
É sabido que o indivíduo possuído pelo ciúme desenvolve sentimentos de desconfiança, incerteza, medo da perda, solidão… Entretanto, como distinguir o que de fato é realidade daquilo que não passa de fantasia? Ou ainda: como evitar que haja uma supervalorização de um sentimento que não passa de um embrião, passível de ser ainda abortado?
O motivo de um ciúme (ou “ápice da triangulação”, grifo meu), é sempre considerado um “intruso”, “uma pedra no sapato”. Quais são seus reais objetivos quando se aproxima ou mesmo manifesta eventual interesse? É, de fato, uma ameaça real, ou tudo não passa de cria da nossa insegurança? Nesse sentido, faz-se necessária uma análise criteriosa da situação em questão. Trava-se, a partir daí, um embate sério entre realidade e fantasia. É preciso identificar se existe mesmo um “motivo”, ou, quando muito, o quanto convém desperdiçar de energia psíquica para enfrentar a situação (real ou não). Uma vez diagnosticada uma situação clara de ciúme, faz-se, ainda, necessário avaliar as possíveis formas de “enfrentamento”. Confronto, manipulações, chantagens, ou até mesmo ameaças frias… São inúmeros os estratagemas que o ciumento utiliza para “eliminar” seu sofrimento. O diálogo franco – a via mais direta para o entendimento -, entretanto, é o que menos se observa.
Até que ponto chega o ciumento, que se vê na obrigatoriedade de eliminar seu rival (?) – motivo – para (re) conquistar seu lugar no coração do outro? Que garantias há que justifiquem a eliminação do objeto de ciúme como a melhor estratégia para “ganhar” o amor do terceiro envolvido? E ainda: faz-se necessário, enfim, eliminar referido objeto?
O indivíduo ciumento* é, em sua essência, frágil em sua visão de mundo, e em particular em sua visão quanto à relação que o afeta. Carregado de mesquinhos sentimentos, o ciumento tem uma visão rasa dos fatos, sempre reduzindo-os ao seu mundo instável e diminuto. Dificilmente consegue enxergar além das aparências; formando, quase sempre, conclusões apressadas, eivadas de amargor e ressentimentos. Sua razão é embrutecida pela supremacia das emoções à flor da pele, em geral confusas e distorcidas.
Como já dito, o ciúme não nasce da noite para o dia. Ao contrário, necessita do emprego de muita energia psíquica para de fato se instalar. Pode-se dizer que é feito a “água mole em pedra dura”: vai, aos poucos, devagarinho, ganhando espaço, aprofundando-se, assenhoreando-se. Aqui, há que se perguntar: sendo algo “em construção”, não pode o ciúme ser evitado antes que tenha assumido tamanha desproporcionalidade? Sendo um “monstro em formação”, não pode o mesmo ser amputado pela raiz?
Quem sente ciúmes tende, em geral, a justificar-se pela negatividade. Nega toda e qualquer atitude que venha a ser considerada “carregada” de ciúme. Enfatiza o cuidado com o outro, a preocupação excessiva pelo seu bem estar, o extremado zelo pelos seus passos; nunca, entretanto, afirma que está sendo ciumento. Ciumento é o vizinho, o colega de trabalho, o amigo de bar. Se for um “ciumento doentio”, então, esse, sim, mora bem longe! Assim, negar o ciúme passa a ser a melhor estratégia para, intimamente, melhor conviver com ele. Negando-o, não se faz preciso encará-lo. A face do ciúme não é fácil de se ver!
Contudo, o indivíduo ciumento tende a reforçar ainda mais sua baixa autoestima quando perde a oportunidade de melhor encarar esse sentimento. “Aceitá-lo” começa por ser a melhor opção, o que o possibilita a trilhar novos caminhos. Ao aceitar sua condição de “ser ciumento”, o homem se coloca no caminho da luz, no caminho da sua verdade, e consequentemente, ganha novas oportunidades. Nesse sentido, planejar um novo futuro, dar uma nova direção a sua vida, caminhar com novas pernas, tudo passa a ser mais rico que se buscar razões e motivos que o conduziram a tal estado.
Enquanto a triangulação Deus, Caim e Abel e o consequente assassinato deste por aquele exemplificam uma das mais remotas cenas de ciúme, pode-se afirmar que referido sentimento é intrínseco à condição humana. Não obstante, o que justifica que algumas pessoas melhor administram tal condição, enquanto outras se tornam escravas de seu próprio labor? É possível curar-se do ciúme?
Penso ser esse um tema para outra conversa!