Segundo o “mito da alma gêmea”, no princípio, o homem era um ser completo (duas cabeças, quatro pernas, quatro braços). Entretanto, querendo igualar-se aos deuses, uma vez que se consideravam “seres perfeitos, completos, tão bem desenvolvidos”, os homens subiram aos céus na tentativa de também ocupar o lugar antes reservado apenas aos deuses. Nessa luta, entretanto, venceram os deuses; e Zeus (pai dos deuses e dos homens), profundamente revoltado com tamanha rebeldia desses, decidiu castigá-los. Tomando de uma espada, cindiu todos os homens, dividindo-os ao meio. Em seguida, pediu ainda ao deus Apolo que cicatrizasse o ferimento (o umbigo) e virasse a face dos homens para o lado da fenda para que observassem o poder de Zeus.
Assim sendo, os homens caíram na terra novamente e, desesperados, cada um saiu à procura da sua outra metade, sem a qual não viveriam. Tendo assumido a forma que nós temos hoje, os homens procuram sua outra metade, na busca incessante de um dia encontrar sua “alma gêmea”.
Que deduzimos do mito? De imediato, podemos afirmar: somos seres faltantes, incompletos! Somos seres imperfeitos! Somos seres e-ter-na-men-te carentes!
Pode o homem conviver infinitamente com essa falta, com essa imperfeição? Ainda assim, pode o homem ser capaz de ser feliz? Em sendo “incompleto”, como se justifica a busca de algumas pessoas pela “pessoa perfeita, completa”?
De fato, são insondáveis os desígnios da natureza humana. “Destino”, “sorte”, “sina”, “carma”… Qualquer que seja a justificativa que se queira dar, a natureza do homem é repleta de mistérios.
Sendo tão terrenamente distante do tão outrora sonhado alcançado céu, o que denota a “pequenez” do homem, por que razão, ainda assim, encontramos pessoas exigentes demais, insatisfeitas demais, amargas demais? Por que razão ditas pessoas não se contentam com o que a natureza lhes oferece? Por que razão “querem sempre mais”?
Qual a dificuldade que algumas pessoas encontram para serem felizes “com pouco”? Qual a dificuldade que o homem encontra para aceitar sua condição de “incompleto” e ainda assim sentir-se com pleno direito a buscar sua felicidade?
Nessa perspectiva, há que se observar que nem sempre o homem está plenamente satisfeito com o que possui. Quando não possui algo, trata logo de querer tê-lo. Se encontra obstáculos em adquiri-lo, sofre mais ainda. Logo desenvolve sentimentos de hostilidade, malevolência, rancor. Seu olho “engorda” com a visão do objeto desejado pertencente ao outro.
Nesse sentido, temendo tornar-se ainda mais inferior ao outro, pelo simples fato de que não possui aquilo que o outro possui, engendra inúmeras estratégias para igualar-se àquele, numa sôfrega corrida contra o tempo, na ilusão de tornar-se um “ser completo”. Possuir aquilo que o outro possui, ou, quando muito, adquirir bem semelhante ao bem do outro passa a ser o maior investimento de energia psíquica. Em casos extremos, eliminar o objeto de desejo existente no outro é o caminho mais curto para torná-lo semelhante. Assim, ambos passam a “não ter”. Ambos passam a ser, agora, iguais.
O indivíduo invejoso desenvolve, às avessas, um senso de criação, quando emprega energia psíquica para a realização de algo, ainda que tortuosamente. “Vai à luta”, embora confunda critérios e armas para atingir seu fim último: o objeto de desejo do outro. Que razões justificariam almejar aquilo que pertence ao outro?
De fato, somos inexoravelmente imperfeitos, incompletos, faltantes, sozinhos. Nossa eterna falta é razão suficiente para cobiçar a felicidade do outro? O que impede o homem de melhor aceitar sua condição de ser incompleto, e ainda assim procurar ser feliz? O “castigo” ao qual fora submetido quando ousou igualar-se aos deuses não foi suficiente para atestar-lhe sua pequenez?
Não obstante, ainda assim temos direito a ser felizes. Temos direito a querer uma maior completude perante nossa incompletude. Completude ainda que incompleta. Incompletude sadia, terna, pacífica.
E o que dizer da eterna busca pela “alma gêmea”? Ou da eterna busca pela “metade da laranja”?1
E se o homem se contentasse com menos, e construísse sua felicidade, ao invés de querer encontrá-la “pronta”?
Tema para uma outra conversa.
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